Foto: Kazunori Shiina
De acordo com Scott (1990) pode-se compreender que gênero é um elemento constitutivo das relações sociais de poder, baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, implicando na articulação de símbolos culturalmente disponíveis; conceitos normativos que procuram limitar as possibilidades de interpretação desses símbolos; relações sociais e identidades subjetivas. É possível assimilar ainda que o conceito gênero é uma categoria de análise histórica, que rejeita o determinismo biológico como explicação para as diferenças dos comportamentos e desigualdades entre os sexos, e as considera como uma construção social, que institucionaliza os papéis considerados socialmente adequados, tanto para os homens quanto para as mulheres (SCOTT, 1990). Assim, a violência que as mulheres sofrem cotidianamente no espaço doméstico foi caracterizada como uma violência de gênero. (SILVA, 2015).
De acordo com Bourdieu (1998), para compreender a formação da desigualdade de gênero na sociedade, é preciso perguntar-se quais são os mecanismos históricos que são responsáveis pela des-historicização e pela eternização das estruturas da divisão sexual e dos princípios de divisão correspondentes. Assim, segundo Le Goff (1988), é necessário o pré-questionamento sobre o poder do discurso e suas narrativas, ou seja, sobre quem tem contado a história da sociedade. A história é uma prática social, uma questão política. Dessa forma, “a tomada de consciência da construção do fato histórico, da não-inocência do documento lançou uma luz reveladora sobre os processos de manipulação que se manifestam em todos os níveis da constituição do saber histórico” (LE GOFF, 1988, p. 11). Essa construção do fato histórico e sua narrativa são também um instrumento e um objeto de poder. De acordo com o autor, a leitura da história do mundo se articula sobre uma vontade de transformá-lo e manipulá-lo para os interesses do grupo dominante:
Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. (LE GOFF, 1988, p. 426).
Conforme dito por La Barre (1673), tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, pois eles são, a um tempo, juiz e parte. O poder do senso comum faz com que os interesses particulares de um determinado grupo projetados na história sejam moldados e tidos como verdade, tal como sejam naturalizados e eternizados, de modo que fique difícil distinguir tais mecanismos que neutralizam a história. Nesse sentido, afirma Bourdieu (1998, p. 6):
Lembrar que aquilo que, na história, aparece como eterno não é mais que o produto de um trabalho de eternização que compete a instituições interligadas tais como a família, a igreja e a escola. É reinserir na história e, portanto, devolver à ação histórica, a relação entre os sexos que a visão naturalista e essencialista dela arranca.
De acordo com Beauvoir (1949), a mulher é considerada o segundo sexo não por razões naturais e imutáveis, mas sim por uma série de processos sociais e históricos que criaram esta situação. A mulher é tida como o “outro”, como uma categoria secundária em relação ao homem, por estar submetida, historicamente, em relação de inferioridade ao homem, como um ser não suficientemente desenvolvido. Essa construção hierárquica foi construída a partir da tendência original do ser humano em querer sobrepor-se a outra consciência, domesticando-a e tornando-a objeto, conforme exposto por Viana (2013, p. 4):
A afirmação do sujeito como existindo em situação passa pelo problema ontológico original representado pela categoria do Outro, onde se observa a tendência original do ser humano em querer fazer-se soberano sobre outra consciência, alienando-a como propriedade e tornando-a objeto. Assenhorando-se de outra consciência, o homem constrói uma tensão recíproca alimentada pelo fato de que, ao colocar o Outro em desvantagem, ele próprio se sobressai. Ao dominar a natureza e transformar o mundo, o homem afirmou-se como sujeito transcendente sobre as coisas circundantes e a mulher foi presa fácil dessa soberania, principalmente por apresentar a desvantagem biológica relacionada à menor força física e aos encargos maternais.
A estrutura da dominação masculina é parte de um processo histórico e, como tal, passível de mudanças. A dominação masculina é naturalizada e eternizada através da reprodução, pelos homens e instituições – família, escola, igreja e Estado –, lugares de elaboração e imposição de princípios que fundamentam um acordo das estruturas sociais e das estruturas cognitivas e se reforçam com a violência simbólica. (BOURDIEU, 1998).
De acordo com Bourdieu, a dominação masculina e o modo como é imposta e vivenciada é resultante de violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias simbólicas da comunicação e do conhecimento. As constantes ocultas que geram um padrão socialmente construído, de escolhas orientadas, que têm o masculino como medida de todas as coisas e a própria ordem social como imensa máquina simbólica, que ratifica a dominação masculina.
Segundo Bourdieu (1998), a diferenciação de forma arbitrária entre os gêneros, estrutura-se na dicotomia entre o feminino e o masculino em um sistema de oposições homólogas, de forma que atribui ao masculino o racional e o objetivo, e à mulher, o emocional e o subjetivo:
Arbitrária em estado isolado, a divisão das coisas e das atividades (sexuais e outras) segundo a oposição entre o masculino e o feminino, recebe sua necessidade objetiva e subjetiva de sua inserção em um sistema de oposições homólogas, alto/baixo, em cima/embaixo, na frente/atrás, direita/esquerda, reto/curvo (e falso), seco/úmido, duro/mole, temperado/insosso, claro/escuro, fora (público/dentro (privado), etc., que, para alguns, correspondem a movimentos do corpo (alto/baixo/subir/descer, fora/dentro/sair/entrar). Semelhantes na diferença, tais oposições suficientemente concordes para se sustentarem mutuamente, no jogo e pelo inesgotável de transferências práticas e metáforas; e também suficientemente divergentes para conferir, a cada uma, uma espécie de espessura semântica, nascida da sobredeterminação pelas harmonias, conotações e correspondências. (BOURDIEU, 1998, p. 16)
Para Bourdieu, essa estruturação da dicotomia entre o masculino e o feminino, que estabelece, de forma sutil, a desigualdade entre os gêneros, é naturalizada, ou seja, tida como natural, como uma norma a ser seguida e reproduzida socialmente, por vezes pelo consciente, por outras, de forma inconsciente:
Esses esquemas de pensamento, de aplicação universal, registram como que diferenças de natureza, inscritas na objetividade, das variações e dos traços distintivos (por exemplo em matéria corporal), que eles contribuem para fazer existir, ao mesmo tempo que as “naturalizam”, inscrevendo-as em um sistema de diferenças, todas igualmente naturais em aparência; de modo que as previsões que elas engendram são incessantemente confirmadas pelo curso do mundo, sobretudo por todos os ciclos biológicos e cósmicos. (BOURDIEU, 1998, p. 16).
A divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado das coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação, conforme analisou o filósofo:
Esta referência ao mundo que Husserl descrevia com o nome de “atitude natural”, ou de “experiência dóxica” – deixando, porém, de lembrar as condições sociais de sua possibilidade. Essa experiência apreende o mundo social e suas arbitrárias divisões, a começar pela divisão socialmente construída entre os sexos, como naturais, evidentes, e adquire, assim, todo um reconhecimento de legitimação. É por não perceberem os mecanismos profundos, tais como os que fundamentam a concordância entre as estruturas cognitivas e as estruturas sociais, e, por tal, a experiência dóxica do mundo social (por exemplo, em nossas sociedades, a lógica reprodutora do sistema educacional), que pensadores de linhas filosóficas muito diferentes podem imputar todos os efeitos simbólicos de legitimação (ou de sociodicéia) a fatores que decorrem da ordem da representação mais ou menos consciente e intencional. (BOURDIEU, 1998, p. 17).
Ressalta-se que “desde o berço, e mais ainda daí em diante, os pais esperam coisas diferentes da menina e do menino. É claro que tal expectativa não é um estado de alma: traduz-se em comportamentos” (BEAUVOIR, 1982, p.489). Assim a diferenciação dos sexos é incentivada pelos pais a cada momento em diferentes situações, pois “um de seus maiores medos é ter um homossexual como filho ou uma filha masculinizada” (BEAUVOIR, 1949a, p. 489). Neste sentido, explica Rangel (2017, p. 4):
A primeira identidade atribuída ao indivíduo e com a qual ele se identifica é a identidade de gênero. Antes mesmo de nascer já existe toda uma preparação para receber a criança que será “a princesinha” ou “o meninão”. Nessa perspectiva, ao nascer a criança adentra o mundo rosa ou azul, com todas as imposições inerentes ao respectivo gênero e passa a internalizar comportamentos socialmente atribuídos aos homens e às mulheres. Esses comportamentos sociais são naturalizados pela sociedade que passa a doutrinar as crianças para que exerçam seus papéis sociais de acordo com o estabelecido, a menina é sensível, frágil e doce, enquanto o menino é forte, corajoso e valente.
Conforme analisado por Belloni (2007), o ser humano não se torna espontaneamente um ser social com competências sociais efetivas. É preciso que os indivíduos em formação interiorizem as disposições que os humanizam, tornando-os indivíduos sociais. “A socialização é um processo essencialmente ativo que se desenrola durante toda a infância e adolescência por meio das práticas e das experiências vividas, não se limitando de modo algum a um simples treinamento realizado pela família, escola e outras instituições especializadas”. (BELLONI, 2007, p. 2). Desta forma, entende-se que o indivíduo, assim como sua identidade de gênero, é uma construção social que tem início desde a infância.
Antes da diferenciação sexual, homem e mulher são seres existenciais em situação, sendo inseridos em contextos singulares que os diferenciam, mas tais diferenças não eliminam a caracterização original de serem sujeitos livres, e mais ainda, condenados a serem livres, como afirma Sartre em sua obra O Existencialismo é um Humanismo (1946), ou condenados à ambiguidade conforme ao que poderia se concluir na filosofia beauvoireana, ao considerar que o ser é responsável por escolher-se entre as possibilidades existenciais do mundo dado. Dessa forma, Beauvoir afirma que o próprio sujeito é responsável em fazer-se e construir-se:
A mulher não é uma realidade imóvel, e sim um vir-a-ser, é no seu vir-a-ser que se deveria confrontá-la com o homem, isto é, que se deveria definir suas possibilidades. O que falseia tantas discussões é querer reduzi-la ao que ela foi, ao que é hoje, quando se aventa a questão de suas capacidades; o fato é que as capacidades só se manifestam com evidência quando realizadas; mas o fato é também que, quando se considera um ser que é transcendência e superação, não se pode nunca encerrar as contas. (BEAUVOIR, 1949a,p.72).
A noção de essência feminina distingue o ser feminino do ser masculino, estabelecendo ao corpo feminino papel essencial na construção desta diferença.
Obviamente existem diferenças genéticas, endócrinas, anatômicas entre a fêmea humana e o macho: mas não bastam para definir a feminilidade: esta é uma construção cultural e não um dado natural...; ... ninguém nasce mulher, as pessoas se tornam mulher...; ninguém nasce homem, as pessoas se tornam homem. Também a virilidade não é dada desde o início. Todas as ideologias masculinas visam justificar a opressão da mulher; esta é condicionada pela sociedade de maneira a consentir. (BEAUVOIR, 1972, p.486).
A mulher não é um homem. De acordo com Beauvoir, sua negatividade compor-se-ia, por ironia, no útero, nos ovários e nas glândulas, que lhe inspirariam o pensamento e o comportamento de forma negativa, fato que obviamente não aconteceria em decorrência da anatomia masculina, com seus hormônios e testículos.
Beauvoir desmistifica os antigos conceitos de precedência e superioridade em relação aos dois sexos, demonstrando que essas ideias não encontram eco na biologia, a qual constitui a divisão dos sexos sem nenhuma noção discriminatória premeditada. Escreve a filósofa:
A biologia constata a divisão dos sexos, mas embora imbuída de finalismo, não consegue deduzi-la da estrutura da célula, nem das leis da multiplicação celular, nem de nenhum fenômeno elementar. (...) A reprodução efetua-se então ou por auto fecundação ou por fecundação cruzada. (...) Como quer que seja, essas noções de superioridade de um sistema sobre outro implicam, no que concerne à evolução, teorias das mais contestáveis. Tudo o que se pode afirmar com certeza é que esses dois modos de reprodução coexistem na Natureza, que realiza um e outro a perpetuação das espécies e que, tal qual a heterogeneidade dos gametas, a dos organismos portadores de gônadas se apresenta como acidental. A separação dos indivíduos em machos e fêmeas surge, pois, como um fato irredutível e contingente. (BEAUVOIR, 1949a, p. 37-8).
Nesse sentido, entende-se que os indivíduos não podem ser analisados por comportamentos que não levem em conta a sua experiência no mundo, que é o que os capacita a construir e usar suas possibilidades. O ser humano caracteriza-se por um vir-a-ser, não suscetível de definição por atitudes substanciais, estagnados por preconceitos através dos tempos. A aventura existencial da mulher não deve ser influenciada, tampouco traduzida por seu sexo, funções biológica ou social ou passado histórico distinto. Assim como no homem, há também na mulher a característica original do ser humano que possui a liberdade de transcender-se.
Desde que aceitamos uma perspectiva humana, definindo o corpo a partir da existência, a biologia torna-se uma ciência abstrata, no momento em que o dado fisiológico (inferioridade muscular) assume uma significação, esta surge como dependente de todo um contexto; a fraqueza só se revela como tal à luz dos fins que o homem se propõe, dos instrumentos de que dispõe, das leis que se impõe. [...] é preciso que haja referências existenciais, econômicas e morais para que a noção de fraqueza possa ser concretamente definida. (BEAUVOIR, 1949a, p. 73).
As possibilidades existenciais de cada sexo não devem ser medidas em decorrência dos padrões impostos por suas representações sociais, pois limitar-se a tal definição é perfunctório. Os padrões sociais não definem e determinam as especificidades de cada indivíduo. Ao contrário, conforme Viana (2013) preconiza, as possibilidades da espécie humana são infinitas. Portanto, é no seio da convivência humana que ocorre a realização ontológica do ser humano, não apenas como ser vivo, biologicamente ativo. O corpo da mulher marca decisivamente sua situação, porém, segundo Beauvoir (1949), isso não pode ser considerado uma questão encerrada. A mulher é o corpo, mas não apenas ele. É tudo o mais que por meio de seu corpo ela pode alcançar, pelo seu constante movimento de lançar-se num futuro indefinido e encontrar possibilidades que seu corpo lhe condiciona, corpo enquanto coisa, mas cujas possibilidades não se podem restringir puramente ao corpo:
O corpo, abrigando um sujeito com realidade ontológica, traça a compreensão da trajetória individual do ser e pode resumir fatos que não dizem respeito diretamente a esta trajetória individual (como é o caso do ciclo menstrual na mulher, por exemplo). A atribuição de uma suposta natureza intrínseca, essencial, de fraqueza e incapacidade, denominada “natureza feminina” ou “eterno feminino” não é, portanto, comprovada através dos dados oferecidos pela biologia. (VIANA, 2013, p. 10).
Não é biológico, mas uma construção arbitrária do biológico que dá fundamento aparentemente natural às divisões sexuais estabelecidas. As aparências biológicas e os efeitos, bem reais, que um longo “trabalho coletivo de socialização do biológico e de biologização do social produziu nos corpos e nas mentes conjugam-se para inverter a relação entre as causas e efeitos e fazer ver uma construção naturalizada, como o fundamento in natura da arbitrária divisão imposta”. (BOURDIEU, 1998, p. 9).
Beauvoir nega enfaticamente qualquer tipo de argumentação sobre a condição da mulher que se origina da premissa da ideia de eterno feminino: “é pois tão absurdo falar da mulher em geral como do homem eterno” (BEAUVOIR, 1949b, p.454). A noção de eterno feminino está subentendida como uma ideia força, bem como um axioma que não precisa ser examinado, como nas ciências exatas? Em princípio, não é correto recorrer à tautologia de afirmar que eterno feminino é ele próprio, o eterno feminino. O “eterno feminino” como fato natural é, segundo Beauvoir, o que deve ser desconstruído. Tal ideia ainda é observada como sendo definida por um conceito metafísico, preconceituoso e ilegítimo, que imputa à mulher uma natureza universal e a-histórica, desvinculada de sua singularidade pessoal, histórica, de sentido e de projeto de vida.
Uma noção de imanência para a natureza feminina é completamente injustificável; essa noção se relaciona com a dominação histórica masculina. Seria como uma ideia pertencente ao platônico Mundo das Ideias, em que a mulher tem que participar de tal ideia no mundo sensível, submetendo-se à aceitação de um conceito pronto, acabado, do que seja a existência - a Ideia. O eterno feminino é, por conseguinte, um estereótipo, gerando um dualismo artificial que caracterizou as clivagens macho-fêmea, homem-mulher, masculino-feminino no decorrer da História. Este estereótipo foi consolidado ao longo das gerações por sua própria conta. A diferença hierárquica entre homem e mulher, frequentemente considerada como natural, é na verdade, artificial porque não se funda em provas científicas decorrentes da biologia nem tampouco se apoia em convincentes justificativas históricas. Desde a Antiguidade, a noção de “eterno feminino” encontra-se presente, implícita ou explicitamente, justificando situações concretas de dominação da mulher. (VIANA, 2013, p. 12).
A imanência é uma condição contrária àquela usada para definir o sujeito. “Pôr a mulher é pôr o outro absoluto, sem reciprocidade, recusando contra a experiência que ela seja um sujeito, um semelhante” (BEAUVOIR, 1949a, p.384). Para Beauvoir, a imanência não deve ser vista como característica, mas como uma limitação imposta.
A análise existencialista da condição da mulher caracteriza a imanência feminina como a do ser que permanece em si mesmo, fechado, sem expressão, sem afirmar-se como para-si, sem transcendência. A ideologia sexista pretende encerrar a mulher na Imanência, que é a qualidade de um ser que, encerrado em si mesmo, não se coloca como sujeito em situação. (VIANA, 2013, p. 5).
Para Beauvoir, a mulher representa possibilidades tão amplas quanto as do homem, e nada justifica que tais possibilidades se restrinjam pelo simples fato de ser mulher: “a meus olhos, homens e mulheres eram igualmente pessoas e eu exigia exata reciprocidade” (BEAUVOIR, 1949a, p. 263). Não é sobre apenas defender uma questão feminista, constituída a partir da luta pela igualdade entre os sexos, mas buscar o reconhecimento da mulher como ser, como sujeito afirmado em sua existência, e não apenas como um complemento do homem e da sociedade. A diferenciação sexual, para a filósofa, é considerada como sendo posterior à própria condição do indivíduo como sujeito livre (homem ou mulher). A diferenciação deve ser constituída por escolha, no desdobramento de sua existência, não por meio de uma tese perfunctória pautada pela questão biológica e imutável. É mais legítimo observar no sujeito a integridade de seu ser como existente possível, caracterizado, principalmente pela “inediticidade” de seu vir-a-ser, evitando estereótipos sociais que limitam suas realizações, conforme analisa Viana (2013, p.8):
Tentando fazer no plano histórico o mesmo movimento que os homens viveram tempos atrás, na luta pela transcendência em relação ao mundo, a mulher busca ainda hoje a conquista da própria liberdade e da estruturação de seus direitos, tentando assumir todos os riscos que implicam em não renunciar à sua liberdade e transformar-se em coisa, oprimida e subjugada, pelo ser masculino, em seus projetos e possibilidades.
Considerando que “todo ser humano concreto sempre se situa de um modo singular” (Beauvoir, 1949a, p. 12), já foi visto que a situação vivida pela mulher, enquanto sujeito social, não possibilita a sua plena realização como ser existente, pois “a mulher aparece como o negativo, de modo que toda determinação lhe é imputada como limitação, sem reciprocidade”. (BEAUVOIR, 1949a, p.14).
Uma vez constituído um conceito ideal de comportamento, como o faz a noção de essência feminina, uma conduta que se distancie desse ideal pode ser marginalizada pela sociedade, por não se enquadrar ao modelo. Assim como qualquer ser humano, a mulher tem que escolher-se entre viver exercitando a todo momento sua liberdade existencial ou condicionar-se a corresponder às expectativas que a tirania social lhe impõe.
Dessa forma, a mulher deve - porque tem as mesmas possibilidades que o homem - afirmar-se como sujeito livre, descerrando para sempre a camisa-de-força que esconde o verdadeiro significado de “ser mulher”, senhora do corpo e do seu destino, bem como sujeito da História.
Rafaelly Galossi
REFERÊNCIAS
BELLONI, M.L. Infância, mídias e educação: revisitando o conceito de socialização. Perspectiva, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 57-82, 2007Caetano (2017).
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kuhner. 5. Edição. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2007.
DE BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Vol. 1. Tradução de Sérgio Milliet. Edição. L’Invitée. Paris, Gallimard, 1943.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão. Campinas, SP. Editora da UNICAMP, 1990.
RANGEL, Etuany Martins; MONTEIRO DE CASTRO, Bianca Gomes da Silva Muylaert; MORAES, Luciana Pereira de. “Porque eu sou é home!”: uma análise dos impactos da construção social da masculinidade no cuidado com a saúde. In: Interfaces Científicas - Humanas e Sociais, Aracaju, V.6, N.2, p. 4 – 252, 2017. Disponível em: https://periodicos.set.edu.br/index.php/humanas/article/view/4517/2454. Acesso em 25/10/2018.
SABADELL, Ana Lúcia. Manual de sociologia jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. 2. ed. CIDADE. Editora Revista dos Tribunais, 2000.
SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo. Paris, Les Éditions Nagel 1970.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Educação & Realidade, v. 15, n. 2, p. 28-50, jul.-dez. 1990.
VIANA, Márcia R. O conceito de Eterno Feminino em Simone de Beauvoir. In: II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades Belo Horizonte, 2013.
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